Implantadas sem transparência, regras descumprem LGPD e dão brecha para abusos no compartilhamento de dados de usuários
16/07/2024O Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto de Defesa
de Consumidores (Idec) ajuizaram uma ação civil pública para que o Whatsapp
seja condenado a pagar indenização de R$ 1,733 bilhão por danos morais
coletivos, entre outras obrigações. Sem apresentar informações adequadas sobre
as mudanças de sua política de privacidade em 2021, a empresa violou direitos
dos usuários do aplicativo no Brasil ao forçar a adesão às novas regras e, com
isso, viabilizar a coleta e o compartilhamento abusivo de dados pessoais com
outras plataformas do Grupo Meta, entre elas o Facebook e o Instagram. A
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) também é alvo da ação.
A indenização exigida baseia-se em valores que o Whatsapp já foi condenado a pagar na Europa por irregularidades semelhantes, considerando-se a proximidade das legislações brasileira e europeia sobre proteção de dados. De 2021 a 2023, a União Europeia impôs à empresa multas de 230,5 milhões de euros por omissões e ilegalidades na política de privacidade do aplicativo que ampliaram o compartilhamento de informações pessoais dos usuários no continente. Após recursos, as sanções foram mantidas judicialmente.
Ao adotarem a quantia em euros como parâmetro para indenização no Brasil, os autores da ação levaram em conta a conversão monetária e o fato de que o país é um dos maiores mercados do Wahtsapp no mundo (cerca de 150 milhões de usuários) para chegarem ao valor estabelecido de R$ 1,733 bilhão. O montante é compatível com a capacidade financeira do Grupo Meta, que em 2023 registrou lucro de 39 bilhões de dólares. Caso a Justiça Federal acolha o pedido de condenação, o pagamento não será destinado individualmente aos usuários lesados, mas a projetos financiados pelo Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).
Além da indenização, o MPF e o Idec pedem que o Whatsapp seja obrigado a interromper imediatamente o compartilhamento de dados pessoais para finalidades próprias das demais empresas do Grupo Meta, como a veiculação personalizada de anúncios de terceiros. A ação requer também que o aplicativo disponibilize funcionalidades simples que permitam aos usuários o exercício de seu direito de recusar as mudanças trazidas pela política de privacidade da plataforma a partir de 2021 – caso não estejam de acordo com seus termos – ou mesmo de voltar atrás e cancelar a adesão que eventualmente já tenham feito a essas regras, sem que, com isso, sejam proibidos de continuar utilizando o serviço de mensageria.
Segundo a ação, as práticas do Whatsapp desrespeitam vários dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD, Lei 13.709/18), entre eles o direito conferido aos cidadãos de estarem amplamente informados e livres de coação ao manifestarem o consentimento para que seus dados pessoais sejam utilizados no mercado. As irregularidades violaram também garantias previstas no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) e no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
A partir de janeiro daquele ano, ao abrir o Whatsapp, milhões de brasileiros se depararam com um aviso breve e genérico sobre as alterações nas condições de privacidade. O alerta apontava que todos deveriam aceitar os novos termos até o mês seguinte; do contrário, teriam seu acesso impedido ao aplicativo. Assim, induzidos a acreditar que se tratava de uma exigência para seguir utilizando a plataforma, muitos usuários simplesmente clicaram em “concordar” – opção que aparecia em destaque na mensagem.
Esse gesto aparentemente banal tornou uma série de informações pessoais suscetíveis ao compartilhamento com as empresas coligadas do Grupo Meta. O Whatsapp garante a inviolabilidade do conteúdo das mensagens trocadas por meio do aplicativo, mas tem acesso a diversos outros dados relativos a elas e aos usuários, como seus nomes completos, fotos dos perfis, listas de contatos, os grupos e as comunidades que integram e até mesmo suas localizações, o tempo de uso da plataforma, os modelos de seus smartphones e o nível de carga da bateria dos aparelhos. É a coleta e a disponibilização dessas informações que, sem saber, muitas pessoas acabaram autorizando.
Os dados e metadados coletados pelo Whatsapp sinalizam hábitos, preferências e características dos usuários, como o nível socioeconômico, os horários que acordam ou vão dormir e os estabelecimentos que costumam frequentar. Essas informações são muito valiosas porque, quando compartilhadas com o Facebook e o Instagram, podem ser cruzadas com outras bases de dados e, assim, permitir o direcionamento de anúncios e conteúdos pagos e a sugestão de perfis para seguir nas redes sociais, entre outras ações que geram engajamento e expressivos lucros atualmente.
Mesmo aqueles que resistiram em concordar instantaneamente com a nova política de privacidade e buscaram mais informações encontraram dificuldades para obter os esclarecimentos. Os detalhes das mudanças trazidas à época foram apresentados de maneira dispersa e confusa, por meio de várias páginas da internet, sem uma compilação clara e objetiva do conteúdo. Só para compreender os termos do compartilhamento de dados com as empresas do Grupo Meta, por exemplo, as pessoas eram obrigadas a acessar três links diferentes. Ainda assim, chegavam a informações vagas, que não indicavam precisamente quais dados seriam coletados nem a finalidade disso.
“Esse conjunto de práticas – de desenho de incentivos à aceitação irrefletida pelos implicados, de dispersão de explicações e de mobilização de termos genéricos e subjetivos – configura uma violação direta e grave ao direito à informação dos usuários do Whatsapp, que na prática os levou a ‘concordarem’ com modificações trazidas pela política de privacidade de 2021 que não foram, pela esmagadora maioria deles, sequer minimamente compreendidas em suas consequências”, destacam o MPF e o Idec na ação.
Abuso – A falta de transparência e a coação para obter a anuência dos usuários não foram as únicas violações da LGPD que o Whatsapp cometeu, segundo a ação. A mudança na política de privacidade também possibilitou que a empresa passasse a coletar e compartilhar um volume de informações muito superior ao permitido pela lei.
Segundo a LGPD, o tratamento de dados deve se restringir ao
mínimo necessário para a prestação do serviço. No entanto, o Whatsapp foi muito
além da coleta de números de telefone e outras informações imprescindíveis ao
funcionamento do aplicativo e à habilitação dos usuários. Dados como fotos do
perfil, localização e referências sobre o aparelho utilizado podem ser
relevantes para os interesses econômicos da empresa, mas não são essenciais para
a operação de sua plataforma.
A política de privacidade do Whatsapp no Brasil sequer cita
as bases legais que supostamente autorizariam o tratamento dos dados pessoais
de seus usuários. Essa omissão, também verificada na União Europeia, foi um dos
principais motivos para as pesadas multas aplicadas à companhia naquela região.
Após as sanções, o Whatsapp adotou uma redação mais clara em sua política no
continente e passou a explicitar que as informações compartilhadas não podem
ser usadas para finalidades próprias de outras empresas do Grupo Meta. A versão
brasileira do texto, porém, segue até hoje sem esses ajustes.
“Embora o Whatsapp tenha sido condenado, por diversas
instituições de controle europeias, por uma postura que ele demonstra ter em
nível global (de falta de transparência perante seus usuários e de tratamentos
de dados pessoais à margem das bases legais vigentes e dos princípios de
necessidade e mínimo impacto), desde então ele apenas corrigiu seus rumos em
nível local”, ressaltam os autores da ação. “O Whatsapp deve reconhecer, a seus
usuários brasileiros, o mesmo respeito e a mesma consideração dada a seus
usuários europeus”, concluem.
ANPD – A ação civil pública ajuizada também inclui entre os
réus a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, autarquia criada após a edição
da LGPD para fiscalizar o cumprimento da lei no país e aplicar sanções a quem a
desrespeitar. O MPF e o Idec verificaram falhas graves na atuação da ANPD sobre
a conduta do Whatsapp. Os pedidos judiciais visam ao aperfeiçoamento da
instituição, cuja postura nas apurações sobre o caso passou da colaboração e da
proatividade iniciais para a omissão e a falta de cooperação.
A mudança de posição da Autoridade ocorreu repentinamente,
ainda em 2021. A ANPD integrava um grupo de instituições – ao lado do MPF, do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e da Secretaria Nacional do
Consumidor (Senacon) – que enviou uma recomendação ao Whatsapp com medidas
relativas à sua política de privacidade, em maio daquele ano. A iniciativa
resultou no adiamento do início de vigência das novas condições e no
compromisso da empresa em não impedir o acesso ao aplicativo de usuários que
deixassem de manifestar concordância com os termos.
Por alguns meses, a ANPD manteve sua atuação alinhada à das
instituições parceiras e passou a concentrar a análise sobre os ajustes
necessários nas novas regras de privacidade do Whatsapp. A Autoridade chegou a
publicar duas notas técnicas críticas à política do aplicativo, manifestando
preocupação com o compartilhamento de dados previsto no texto. Porém, a partir
de julho de 2021, a instituição mudou radicalmente sua orientação, impôs sigilo
sobre o procedimento referente à empresa e deixou de prestar informações a
entidades da sociedade civil interessadas.
Quase um ano se passou sem andamentos relevantes na apuração
da ANPD, até que, em maio de 2022, a autarquia emitiu uma terceira nota técnica
indicando que a recomendação expedida ao Whatsapp teria sido cumprida. A
manifestação ignorava os problemas envolvidos no compartilhamento de
informações com as empresas do Grupo Meta. O assunto, segundo a Autoridade,
continuaria sob análise em um procedimento à parte. A nova apuração foi
instaurada, mas também apresentou poucos avanços.
Desde então, a ANPD manteve o sigilo sobre a tramitação do
caso e negou continuamente o acesso a documentos requeridos pelo MPF e pelo
Idec, que vinha investigando as violações da política de privacidade do
aplicativo aos direitos dos consumidores. Em dado momento, o Whatsapp passou a
seguir o exemplo da ANPD e também deixou de prestar contas ao MPF. Na prática,
as condutas da instituição fiscalizadora e da empresa fiscalizada convergiram
para a obstrução dos trabalhos de apuração do caso e criaram obstáculos à
sociedade para o acompanhamento de um tema de amplo interesse público.
A ação civil pública requer que a ANPD seja obrigada a
apresentar cópia integral de seus processos e a justificar detalhadamente o
sigilo que impôs a cada um dos documentos. Se constatada a ausência de
informações sensíveis que possam fundamentar o caráter reservado, o MPF e o
Idec pedem que a Justiça Federal dê publicidade ao conteúdo, uma vez que os
milhões de usuários do Whatsapp no Brasil têm direito de entender adequadamente
o que é feito com seus dados pessoais. Por fim, os autores da ação pleiteiam que
a ANPD seja obrigada a elaborar uma norma que crie limites para a decretação de
sigilo em processos sob sua responsabilidade.
“Ao colocarem a ANPD como demandada nesta ação, seus autores
não procuram apenas responsabilizá-la por sua postura no caso da política de
privacidade de 2021 do Whatsapp em específico. Trata-se disso, mas também de,
sem deixar de reconhecer a importância e os desafios dessa instituição, apontar
para providências necessárias para que ela seja aprimorada e desempenhe suas
obrigações de forma adequada, inclusive em casos futuros”, frisam o MPF e o
Idec.
Caso opte por reconhecer as falhas e se comprometa e
implementar os pedidos formulados na ação, a ANPD poderá até mesmo migrar do
polo passivo ao polo ativo do processo, deixando a condição de ré para
associar-se aos autores na disputa contra o Whatsapp.
Repórter: Ministério Público Federal